Um estilo acima de uma canção
Tenho uma relação muito particular com a música. Meus heróis da adolescência invariavelmente empunhavam uma guitarra e entoavam cantos que a mim diziam muito. Projetava neles a minha liberdade e achava que o tipo de música que eu ouvia dizia muito sobre quem eu era ou como eu pensava.
Quando eu próprio ganhei minha primeira guitarra — da qual extraio algumas notas de maneira rudimentar — a música adquiriu outra dimensão. Passei a valorizar o chamado feeling de um músico em detrimento de harmonias complexas ou técnica apurada. Assim, quando um amigo pediu que eu falasse sobre a minha música favorita, tentei identificar no repertório dos meus artistas preferidos uma canção que fosse mais importante do que as outras. Fracassei. Não fui capaz de escolher uma. Senti que seria injusto com as outras. Concluí que não tenho uma música preferida e sim um estilo preferido: o blues.
O blues (falo do autêntico) é uma manifestação artística dos desesperados, oprimidos, desiludidos. Nasceu entre os escravos que utilizavam a melodia para relatar a sua angústia, o seu lamento diante das mazelas da vida. Por isso, as interpretações de artistas como Buddy Guy, Etta James ou Muddy Waters são tão arrebatadoras. Impossível ficar indiferente diante de um clássico do Mississipi (mesmo que tenha sido produzido e gravado em Chicago ou outra praça).
Sinto uma mudança instantânea no meu estado de espírito quando ouço um blues. É como se a mão divina me suspendesse e me transportasse para outra dimensão a cada mudança de compasso. É delicioso sentir-se seguindo o músico para ver onde as blue notes nos levarão. Se for pra citar uma música para esse momento, sugiro Feels Like Rain, clássico do Buddy Guy.
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Texto criado à partir de uma provocação do amigo e escritor Valmor Bordin que quis saber “qual a tua música preferida?”